A aldeia que o tempo perdeu
O pequeno Guilherme crescera em tons de uma
bipolaridade dicotómica que saltitava entre o cinzento da cidade e o verde da
serra. O dia-a-dia do período das aulas era passado na, então pouco
cosmopolizada, capital. As férias eram religiosamente passadas na aldeia, onde
os arcos, flechas e bestas recriavam o filme do Robim dos Bosques, aquele
senhor que roubava aos ricos para dar aos pobres. Os aromas do campo eram os
únicos odores de santidade que conhecia. Ao crepúsculo era frequente ouvir a
sua avó a chamar
-
Guiiiiiiiii
Num grito que, partido da sua aldeia,
alcançava os melros no cume das árvores mais altas dos montes vizinhos, e
afogava as lagartixas que bebiam o calor das pedras da ribeira.
A vila junto à aldeia era formada por gente
visivelmente envelhecida, pelo que os funerais eram tão constantes na rotina dos
seus habitantes, como na capital as idas semanais ao cinema.
Os cortejos fúnebres faziam parte do plano de
socialização da vila, pelo que era frequente acompanhar pessoas que não se
conhecia, ou que apenas se conhecia de vista.
-
Onde vamos avô?
-
Vamos acompanhar o Sr. Nogueira ao cemitério. Morreu ontem.
-
Porque vais aos funerais de toda a gente?
-
Vou aos funerais das pessoas, para que um dia quando chegar a
minha vez, as pessoas também irem ao meu.
No regresso, guilherme e seu avô, passavam na
única mercearia da aldeia para comprar farelos para as galinhas. As galinhas
comiam farelos embebidos em água... adoravam; os porcos comiam comida
especialmente confecionada para eles; os coelhos comiam trevos de três
folhas... é natural que alguns coelhos tenham comido trevos de quatro folhas,
mas ao certo que de nada lhes valeu.
Nos dias em que não havia funerais, era
frequente os homens mais velhos juntarem-se à volta de uma mesa, cuidadosamente
colocada à sombra da velha alfarrobeira, para ali passarem horas a fio a jogar
às cartas. Era possível sentir o cheiro do cabedal dos porta-moedas cheios de
pequenas moedas de centavos, que utilizavam para as apostas nos jogos. Os
poucos jovens que habitavam aquelas paragens entretinham-se a subir às árvores
e a correr por entre a liberdade dos montes e vales. À noite, os mais velhos
acompanhados dos filhos e netos, reuniam-se numa qualquer casa para sessões de
contos à lareira sobre lobos, bruxas e monstros. Os mais velhos riam... os mais
novos agarravam-se, aterrorizados, às pernas dos seus familiares.
Foi no campo, junto do seu avô que Guilherme
aprendera a podar a grande oliveira e enxertar as amendoeiras do quintal.
Quando havia amendoeiras a mais, enxertavam-nas de ameixieiras. Era comum ver
uma árvore que para um lado dava amêndoas, para outro lado dava ameixas
vermelhas e para trás, ameixas amarelas. A natureza já era complexa nessa
altura. Confuso, Guilherme certo dia perguntou na escola à professora:
-
Professora, como se chama uma árvore cujos frutos são amêndoas e
ameixas de vários tipos?
Ao qual a professora respondeu:
-
Cada árvore dá um tipo de fruto, uma bananeira nunca pode dar morangos.
Viver na cidade e no campo ao mesmo tempo,
dava origem a este tipo de dúvidas existenciais que ficavam por esclarecer.
Foi também com a sua avó que aprendeu a fazer
pão e cozê-lo no grande forno de lenha. Como a logística de fazer pão num forno
a lenha não era simples, tiravam um dia inteiro para o fazer um forno cheio de
pães, que depois eram congelados na arca frigorífica. Era o “dia do pão”. Logo
com a frescura da manhã, um alguidar grande de massa era submetido, pela sua
avó, a fortes golpes de pugilismo, capazes de fazer corar um qualquer Rocky
Balboa. O alguidar era então coberto de mantas, como se estivesse a atravessar
uma gripe de febre e arrepios. Enquanto a massa crescia, no aconchego do calor
das mantas, o forno era enchido de lenha, que ficava a arder por várias horas
até atingir o ponto rebuçado das temperaturas de cozedura dos fornos de aldeia.
Já perto do final da tarde, retiravam o borralho que restava da lenha ardida, e
colocavam cuidadosamente, com uma pá comprida, feita de madeira pelo seu avô,
os grandes “berlindes” de massa alinhados com carinho dentro do forno a
escaldar. Assim foi durante muitos anos, alegria, descontração e muita
estupidez natural. O campo equilibrava os níveis de radicais de stress
oxidativo inerentes à atribulada vida citadina do petiz.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
alteram-se as prioridades...
Por força da evolução e progresso, Guilherme
envereda por uma vida mais cosmopolita, que, ao mesmo tempo, é a vida que lhe
permite ter um emprego estável com o qual alimenta o consumismo dos tempos
modernos. Os jovens da aldeia sumiram, os velhos morreram, e alguns
estrangeiros reformados chegavam para dar vida e cor a algumas casas cujos
funerais já não há memória.
Quando chegou “a vez” de seu avô, poucos
nativos restavam para o acompanhar, e os estrangeiros não trazem esse hábito
das suas origens. A aldeia que o viu crescer, já pouco tem de vida. Por baixo
da velha alfarrobeira, da mesa das cartas já só restam pequenas tábuas podres
cobertas de musgo e habitadas por caracóis.
A enorme casa repleta de alegria onde Guilherme
passava férias, é agora uma pequena casa de paredes silenciosas de tão velhas,
habitada por pequenos insetos e talvez por algum roedor mais audaz. A grande
oliveira ainda se mantém forte e jovial no quintal. Hoje crescido, é raro
voltar ao sítio onde outrora foi feliz, mas sabe que se fechar os olhos e
encostar a orelha ao tronco da grande oliveira, há-de ouvir a voz da sua avó a
chamar
-
Guiiiiiiiii
Num grito que, partido da sua aldeia,
alcançava os melros no cume das árvores mais altas dos montes vizinhos, e
afogava as lagartixas que bebiam o calor das pedras da ribeira.
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