Quando partir, quero ser onda.


As colinas atrás da várzea eram longas, de um verde acastanhado característico do barrocal algarvio. Na várzea as alfarrobeiras dançavam ao som da brisa quente de verão, fazendo as vagens acastanhadas balançar para a frente e para trás como um carrossel na feira. O sol estático lá no alto, irradiava um calor tão estranho, que ao bater no corpo, causava uma sonolência de urso pardo a sair da hibernação. Do lado de cá, a sombra quente da casa abrigava um casal de avançada idade, e uma cortina feita de fieiras de contas de plástico que impedia a entrada de moscas… 
“A cortina impede as moscas da rua de entrar em casa, ou impede as moscas que que conseguiram entrar, de sair de casa?”, pergunta a mulher.
“Sei lá!! Acho que não impede coisa nenhuma…”, returque o homem.
“Está uma brasa não está?”
“Vamos beber uma cervejinha fresquinha?”, continua o homem.
O homem, em câmara lenta, levanta-se apoiado num cajado feito de galho de oliveira, e desaparece por entre as contas de plástico.
A mulher fitava a linha das colinas atrás da várzea. Era uma região parda e seca composta de tons verdes e castanhos, sob um sol abrasador.
“Parece o mar ao fundo” diz a mulher ao ser interrompida pelo taquetaque do cajado.
“O quê?”
“A água o mar, homem!!”“Onde?”“Ali atrás da várzea…”“Água do mar tens tu na cabeça… anda, bebe mas é esta cerveja antes que o sal marinho te desidrate o cérebro …” diz o homem em tom de brincadeira.
Na pasmaceira, só as cigarras conseguiam penetrar no silêncio do calor abrasador de mais uma tarde normal.
  “Beber a grandes tragos extingue a sede, mas beber em pequenos goles prolonga o prazer da bebida”, diz o homem enquanto leva o gargalo da garrafa à boca.“Nunca vi”, responde a mulher.“Nunca viste o quê?”“O mar…””Deixa estar, não sabes nadar… era perigoso ires para a sua beira…”, responde o homem.“Agora também já não tens idade para ir ver o mar.”, continua.“Não me deixes partir sem ver o mar…”“Temos amendoeiras em flor, árvores que dançam ao sabor do vento, uma casa acolhedora na várzea mais linda do monte. Vivemos tantos anos neste paraíso, e agora queres ir ver o mar?”“Agora quero ir ver o mar”
Estavam há duas horas a vê-lo, lado a lado, em silêncio. 
 “Nem todos percebem”, diz a mulher.“Ver o mar não é entrar nele e nadar, nem molhar os pés, nem lavar o rosto… É deixar que aquele ranger nos arranhe e sacuda. É  aqui que nós nascemos, porque as ondas nos salgam tanto a alma que a purificam.”
O INEM chegou rápido. Os senhores dos coletes fluorescentes, num dia normal, encarregaram-se de acomodar a mulher para a viagem. Já deitada, juntando todas as partículas de energia à sua volta, faz um gesto com a mão para que o marido se aproxime, e num tom muito ténue diz:
“Quando partir, quero ser onda.”



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