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A mostrar mensagens de setembro, 2017

Uma rua com pardais

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  Da janela ele via os estudantes que sobem a rua embrulhados em panos negros. A rua era inclinada e eles subiam devagarinho passeio acima, com os músculos contraídos e o cabelo a tremer. Em casa, no calor do silêncio, ficava horas para ali, a olhar. Uma chuvinha sem peso começava a dar o ar da sua graça, e lá fora, os estudantes num princípio de frio e desconforto, mantinham a cadência da passada enquanto se enroscavam contra as suas capas. Na noite daquel a rua, tinha-se a impressão de se morar num romance de Virgilio Ferreira, com página para as faculdades, onde o marcador do lugar de leitura era a rua que vai do botânico aos arcos, apesar da visão dos telhados com as plantações de antenas. Aqueles pequenos pompons pretos lá em baixo, eram os nosso futuros médicos, advogados, físicos, engenheiros, psiquiatras, professores… mas naquela noite apenas pareciam um bando de pardais à solta trauteando cânticos estudantis. Suas almas são orquestras ocultas com instrumentos que tangem e...

Os adereços e a civilização…

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O espaço individual da cognição humana é muito pequeno. Vivemos na rotina e para a rotina até sermos forçados ao contrário. Um automático de decisões anteriormente tomadas e de rotinas estabelecidas. Somos criaturas automatizadas nos nossos mundos, percorrendo os caminhos de menor resistência, já bem conhecidos, fazendo correr as rotinas que já conhecemos e as que mais gostamos. Para que não tenhamos de refletir em tudo o que fazemos, o que se torna cansativo, buscamos sítios e ações onde a reflexão já tenha sido feita. Ao passear pelo parque ao fim‑de‑semana, deixamos que este nos guie pelos seus caminhos e aproveitamos as atividades e atrações que já lá estão. O parque guia-nos pelas suas rotinas, pelo que não necessitamos muita reflexão. Procuramos no parque a oportunidade de ser um tauista temporário que busca o modo de vida da não-ação. À medida que crescemos, tornado-nos repositórios de hábitos, convenções e preconceitos, que depois de determinada idade, raramente são repensados...

Um Deus criacionista (parte I)

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No princípio, antes da génese dos universos não havia ainda sido criado o tempo, nem gerado o espaço. Sem o binómio tempo-espaço, não havia galáxias, nem sistema solar, nem moléculas, e por consequência… não havia qualquer forma de vida complexa ou inteligente, nem lugar para nascerem. Não havia nada? Havia Deus… mas estava só… sozinho sem nada que ver, sem nada que ouvir, sem nada que fazer… nada de nada. E assim viveu biliões e biliões e biliõ es de anos. Um dia, pensou que viver sozinho num mar de nada era demasiado aborrecido e decidiu que tinha de fazer algo para acabar com a monotonia. Sentou-se, esticou as pernas, inclinou a cabeça para cima, e ali ficou imóvel por mais uns biliões e biliões de anos a pensar. Esperem lá… Deus tem pernas? Tem cabeça? Adiante… Sem energia nem matéria e numa solidão sem limites, sombria pela ausência de luz, a tarefa não seria fácil. De que lhe valia ser omnipresente, omnipotente e omnisciente, se não existia nada para além dele. Decidiu então cri...

Em agosto, nada de nada

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A pouco e pouco o céu começa a mudar de tonalidade, anoitece e as coisas tornam-se mais delicadas antes de desaparecerem no escuro. A luz amarela dos candeeiros substitui a claridade azul. As sombras principiam a crescer numa paz lenta de silêncio. Em agosto nada acontece nesta cidade. Não há gritos, não há carros nas ruas, não há azáfama… nada de nada. Tanto ruído no interior deste silêncio. Acendo um velho candeeiro, puxo uma cadeira para me sentar   e deito no copo um resto de whisky que acampava numa garrafa há mais de 8 anos. As cadeiras e a mesa ganham um novo sentido, um aspeto mais útil. Um pouco incomodado pelo tamanho silêncio, tento escrever umas linhas. Encostada à parede a minha guitarra contente de ser bonita, interessada na minha escrita, coitada - Sou gira não sou?     Não é lá muito gira, mas garanto-lhe com a cabeça que sim. Ela aumenta logo de tamanho, feliz, enquanto as sombras principiam crescer na paz lenta do silêncio. Se eu soubesse tocar...