Os adereços e a civilização…

O espaço individual da cognição humana é muito pequeno. Vivemos na rotina e para a rotina até sermos forçados ao contrário. Um automático de decisões anteriormente tomadas e de rotinas estabelecidas. Somos criaturas automatizadas nos nossos mundos, percorrendo os caminhos de menor resistência, já bem conhecidos, fazendo correr as rotinas que já conhecemos e as que mais gostamos. Para que não tenhamos de refletir em tudo o que fazemos, o que se torna cansativo, buscamos sítios e ações onde a reflexão já tenha sido feita. Ao passear pelo parque ao fim‑de‑semana, deixamos que este nos guie pelos seus caminhos e aproveitamos as atividades e atrações que já lá estão. O parque guia-nos pelas suas rotinas, pelo que não necessitamos muita reflexão. Procuramos no parque a oportunidade de ser um tauista temporário que busca o modo de vida da não-ação. À medida que crescemos, tornado-nos repositórios de hábitos, convenções e preconceitos, que depois de determinada idade, raramente são repensados. 
Para lá do comportamento básico das massas, a organização do ser coletivo exige uma série de rotinas, movimentos, adereços e roteiros prescritos. Sem os adereços da civilização, regredimos para um comportamento animal básico. No entanto, em sociedade, aquilo que começa por uma mentira, torna-se com base em adereços - por via da sua encenação, uma verdade incorporada na sociedade. As pessoas residem tanto nos seus corpos como nos adereços. A nossa passagem pelo mundo deixa um registo em linguagem e adereços. Ao deixarmos os adereços que colacionámos numa vida, acumulamos uma biografia e escrevemos uma história sobre nós próprios. “Andy Clark” dizia que as criaturas mais evoluídas nem armazenam nem processam informação de forma dispendiosa. Só se preocupam em ter e saber o necessário para a realização da tarefa. A maioria de nós depende dos adereços do meio ambiente para que estes façam uma parte da reflexão. O trabalho não tende a ocorrer em salas vazias. Criamos memórias e histórias a partir dos adereços que nos rodeiam. Esses adereços influenciam as massas. Certo dia ia a passear pelas ruas de Coimbra quando vi umas baias separadas por uma passadeira vermelha. À volta a multidão ia-se juntando. Perguntei o que ia acontecer, do que estavam à espera, mas ninguém sabia responder. Provavelmente aqueles adereços ficaram lá de algum evento passado, mas tiveram o poder de agrupar massas, que à volta disso, criavam histórias do que aquilo poderia ser. Quem quiser invocar a energia de Vénus, rodeia-se de adereços que tenham a ver com a energia do planeta e da deusa do amor (cisnes, concha de madrepérola, etc). Cria-se assim um veículo para a manifestação de um ritual. Os adereços afirmam e invocam a força. Mediante estes meios diferentes religiões tentaram invocar presenças divinas e tentaram estabelecer condições para as suas manifestações. Na tradição católica a forma de invocar a força é feita através dos adereços e dos rituais de repetição. Na tradição evangélica a força surge aleatoriamente e começa a moldar o que quer que encontre. Os xamãs e os homens do espetáculo conhecem bem o valor dos adereços. 
Os espíritos rebeldes são identificados como pioneiros, inovadores e até românticos. Os verdadeiros revolucionários sabem que para mudar o automático coletivo, é necessário erradicar cada raiz, cada extensão da sabedoria dos séculos. A verdadeira revolução parece um desastre natural, em que todas as incorporações do conhecimento foram apagados, e todos os adereços destruídos. Aconteceu no passado, acontece hoje em dia… Vivemos numa casa assombrada por nós mesmos. (TS)


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