Os dias de uma cidade normal...

A cidade onde moro há 5 anos é a mesma que habita os sonhos dos estudantes há mais de quatro séculos. Cidade sem idade, onde muitos sonhos nasceram e muitas lágrimas se verteram. As ruas que se dobram em cotovelos imprevistos, correm coxas com um passeio ao sol e outro à sombra. Aquando da minha chegada, muitos sábados foram passados a cavalgar a fera amarela, um jipe ancião de fabrico português que a minha mãe me comprou há muitos anos atrás. Procedia com método à verificação da cidade, ponte por ponte, faculdade por faculdade, numa peregrinação que terminava invariavelmente no Penedo da Saudade. Ali via a vida a passar numa paciência de pele-vermelha que aguada, atrás do seu penedo, a chegada dos batedores brancos. Certa manhã fria, desci até ao jardim botânico e sentei-me num banco de ripas a ler as crónicas que um amigo meu publicou, enquanto um raio quente de sol, perdido por entre os galhos carnudos, se me enroscou aos tornozelos numa fraternidade canina. As letras que saltavam do livro entravam em mim, mas agrupavam-se às vezes de forma diferente nas prateleiras do meu pensamento. O autor do livro transformou-se de pensador a escritor da mesma forma que um mestre das artes ninja entra e sai da nossa casa sem darmos por nada. São as cambalhotas da vida. Para provar as iguarias da região, fiz algumas incursões à Mealhada, mas o preço dos pratos obrigava a consumir as pastilhas para a azia a que a carne tenra e suave do leitão poupava. No Parque Verde do Mondego, a Ponte Pedro o Inês, suspensa sobre o rio à maneira de uns suspensórios torcidos de cólicas como um quadro de Cézane, separa duas zonas de árvores verdes com folhas grávidas de pardais a dormir. Sente-se o desassossego dos pardais quando as gaivotas invadem o rio, da mesma forma que se sente uma reconciliação eminente depois de um sorriso que pede desculpa. Parando para contemplar o Mondego, ouvem-se os ecos, moldados pelo vento como véus de sons, que trazem o peso da cidade às costas. Para os mais atentos, o desafio é ouvir as badaladas da cabra inchada, que esvoaçam tranquilas como as tragédias já mortas de outrora. No dia do cortejo estudantil vemo-nos rodeados de polpa jovial, e a cidade veste-se de uma espécie de carnaval académico idêntico à entropia dos pombos quando alguém lhes atira um punhado de pão desfeito. Para quem a entropia jovial do cortejo lhes faz aumentar os níveis de ansiedade miudinha, o Choupal é uma ótima alternativa. Nele, entre os bafos da refração do vento, é possível sentir a textura côncava do silêncio. Ainda no fim de semana passado lá fui correr. Com os pulmões ainda aos saltos, ligo motor da fera e evado-me daquela ilha de árvores paleolíticas, pulando como um golfinho de um lago, num soluço de motor desajeitado. A avenida Sá da Bandeira, eternamente cinza, húmida e fria, corre para a rua da Sofia entre duas gengivas de prédios inválidos, e leva-nos até à baixa. Na velha retrosaria de uma pequena transversal, já com pouca vida, a empregada dá o toque final aos soutiens de renda e aos mosquiteiros torácicos com esperança que o manequim faça rejuvenescer os vinte anos de resignação conjugal dos transientes que passeiam a sua solidão. Nesta cidade, a energia dos jovens estudantes contrasta com a resignação dos que por lá vão ficando. São as vicissitudes da vida. (TS)


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