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O velho e o mundo

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Ao entardecer, debruçado sobre a janela vejo a trovoada cair abruptamente sobre a cidade, como um pedregulho enorme. Não está dia para passear. Hoje vou ler até me doerem os olhos. No prédio da frente uma senhora sacode as migalhas de uma toalha à janela, ao mesmo tempo que os relâmpagos sacodem o ar e abanam o espaço. Rapidamente a senhora recolhe a toalha e fecha a janela, mas o velho do primeiro andar sai para a sua caminhada, cumprindo a rua rotina diár ia. Tem o costume de andar pelos passeios, olhando para a esquerda e para a direita. O seu olhar nítido como uma ave de rapina, e o modo como repara nas ruas, transmite-me a ideia de que vê todos os dias aquilo que nunca tinha visto. Como se as mesmas ruas escondessem a cada recanto temporal a eterna novidade do mundo. O modo como olha as casas, as árvores, como escuta os sons do vento e dos pardais,dá a sensação que nasce de novo todos os dias para beber do mundo. Anda na cidade como quem anda no campo. Às vezes penso se a metafís...

Quando partir, quero ser onda.

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As colinas atrás da várzea eram longas, de um verde acastanhado característico do barrocal algarvio. Na várzea as alfarrobeiras dançavam ao som da brisa quente de verão, fazendo as vagens acastanhadas balançar para a frente e para trás como um carrossel na feira. O sol estático lá no alto, irradiava um calor tão estranho, que ao bater no corpo, causava uma sonolência de urso pardo a sair da hibernação. Do lado de cá, a sombra quente da casa abrigava um casal de avançada idade, e uma cortina feita de fieiras de contas de plástico que impedia a entrada de moscas…   “A cortina impede as moscas da rua de entrar em casa, ou impede as moscas que que conseguiram entrar, de sair de casa?”, pergunta a mulher. “Sei lá!! Acho que não impede coisa nenhuma…”, returque o homem. “Está uma brasa não está?” “Vamos beber uma cervejinha fresquinha?”, continua o homem. O homem, em câmara lenta, levanta-se apoiado num cajado feito de galho de oliveira, e desaparece por entre as c...

Às vezes entretenho-me com a morte

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Nas tardes de chuva é sempre assim: uma melancolia cinzenta que traz a saudade nem eu sei de quê. A minha vida parece existir só até à janela, e para além da janela, na tristeza das árvores que à chuva se me afiguram humanas. Pessoas que conheci… já não existem. Ainda ouço o bater das asas nas tardes amenas, dos loucos momentos que guardei para mim. Não quero saber se tenho quase cem anos, mas o tempo deu-me vida que se encheu de enganos. Fo ram muitas as noites cheias de nada, em que sentado na poltrona do escritório, farto da minha própria companhia, chorei, sem emitir nenhum som, sacudindo os ombros como as atrizes do cinema mudo. Sentia-me só e sem vontade de chamar por ninguém porque (sei) que há travessias que só se podem fazer sozinho. Quisera algum dia voar até onde foram os meus sonhos alegres d´outrora. Hoje o meu voo não passa da janela como um acordeão reumático de tango, e fico sentado no interior de mim próprio como os esquimós velhos abandonados no gelo, esvaziados de s...

A felicidade veste branco

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Há quem diga que as páginas da felicidade são escritas com tinta branca. Talvez por isso a felicidade passe ao lado dos mais desatentos. Infelizmente, hoje em dia, há pouquíssimos motivos para acreditar que as pessoas são realmente felizes. Verifica-se entre as sociedades modernas um enorme aumento dos níveis de depressão e ansiedade, particularmente entre as crianças. Recordando uns apontamentos de física de algibeira que dizem que para qualquer porção de matéria existe a mesma quantidade de antimatéria, então para toda a depressão do mundo também existirá o seu oposto, nomeadamente sorrisos, felicidade e alegria. Sim, as companhias farmacêuticas estarão em condições de rejubilar de alegria, uma vez que os seus lucros não param de crescer à medida que inventam novas drogas atidepressivas. No marketing do sofrimento vendem-se soluções individuais sem ver e/ou perceber o que está na génese do problema. Talvez seja um problema social, e ao mesmo tempo, também um problema individual. Hou...

E porque ontem alguém fez anos…

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Procurei o significado de aniversário no dicionário na esperança de me acrescentar conhecimento, mas não… só me acrescentou idade. Diz que aniversário é “Dia em que se completa um ou mais anos”. Como não faz um ano que nasci, só me resta ficar com “mais anos”. Sempre considerei o dia do aniversário como apenas um dia cravado no calendário por acidente, fruto do acaso. Um dia que não é diferente de ontem ou de hoje, nem será diferente de amanhã.  A única diferença é que só ocorre uma vez por ano, que é uma convenção fixada para que possamos ter a impressão de que tudo começa de novo, quando na verdade, um dia sucede ao outro e não há, naturalmente, nada de novo. Para o meu ego interior, o aniversário é apenas isto… um dia normal, no entanto, o meu ser exterioriza o aniversário de outra forma. O aniversário assinala mais um ano em que os amigos e familiares dão cor e alegria à minha vida. Assim não posso deixar passar esta data, por todos aqueles que a utilizam para me fazer lemb...

Manhã cinzenta

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A manhã, meio fria, meio morna, entra pela janela, agora aberta, trazendo a pouca luz que vagueia no ar. Uma névoa ligeira, cheia de despertar, esfarrapa-se em mim ainda adormecida, trazendo a frescura lenta da manhã escura. A chuva contínua desde a noite do dia anterior, faz com que o sábado comece desinteressante. Apetece-me ficar suspenso, entre a névoa e a manhã, como um corpo espiritualizado, treinando à distância as atividades humanas e emoções perdidas.  Tenho de me fazer à vida. Olho à janela e vejo uma rapariga lá em baixo, à chuva. Corre pela estrada despida de carros, e entra na pastelaria. Provavelmente mantém o hábito de tomar o pequeno-almoço mesmo nos dias de chuva. São escolhas; eu também mantenho o hábito de almoçar todos os dias; são escolhas. Regra é da vida que podemos, e devemos, aprender com toda a gente. Há seriedade da vida que podemos aprender com charlatães, filosofias com os estúpidos e lições de firmeza que vêm no acaso. Tudo está em tudo. A chuva parou...

"A vida seria trágica se não fosse divertida..."

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Apagou-se uma das estrelas mais brilhantes do universo científico… Depois de lhe ter sido diagnosticado aos vinte e um anos, uma doença degenerativa fatal (esclerose lateral amiotrófica), a comunidade médica deu-lhe dois a três anos de vida. Stephen Hawking agarrou nesses três anos, e num percurso de força e amor, desafiando os limites do cosmos e da vida humana, transformou-os em mais cinquenta anos. Em 1985, uma grave pneumon ia deixou-o a respirar por um tubo, forçando-o, desde então, a comunicar através de um sintetizador de voz eletrónico. Vivendo sob o espectro de uma morte precoce, sempre disse que não tinha medo da morte, mas também não tinha pressa de morrer, pois ainda tinha muitas coisas para fazer. Dedicou a sua vida à descoberta do Universo, à razão pela qual existimos, e pela qual deixamos de existir. Apesar de todos os contributos sobre os buracos negros, estes continuam envoltos em mistério. No seu enorme legado, deixa-nos a radiação de Hawking, emitida pelos buracos n...

Do oito ao oitenta

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Aos domingos um passeio pelo pulmão da cidade, a Alameda. Observava os mais velhos sentados em bancos de pau, que em movimentos de câmara lenta, decapitavam o pescoço comprido da cinza do cigarro com o mindinho. Nessa altura toda a gente fumava... Até os mais novos, que sem opção, acabavam por se habituar a viver em constantes castelos de nuvens em tons de brancos e cinzentos. Se há coisa que não tenho saudades, é do tempo em que se fumava em todos os locai s. Ir a um restaurante, café, bar ou discoteca era um terror… O cheiro do tabaco tinha a capacidade de se entranhar na roupa e cabelo com mais facilidade, do que o vírus da gripe de assaltar os humanos mais distraídos. Não se sabe quando ou se irá desaparecer definitivamente, mas é certo que se acabaram os dias de glamour do cigarro, em que era associado à sedução e poder. Voltando à Alameda, a quantidade de ruídos de que é feito o silêncio é impressionante; uma constelação de pequenos sons, interrompidos pelos berros estranhamente...

A aldeia que o tempo perdeu

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O pequeno Guilherme crescera em tons de uma bipolaridade dicotómica que saltitava entre o cinzento da cidade e o verde da serra. O dia-a-dia do período das aulas era passado na, então pouco cosmopolizada, capital. As férias eram religiosamente passadas na aldeia, onde os arcos, flechas e bestas recriavam o filme do Robim dos Bosques, aquele senhor que roubava aos ricos para dar aos pobres. Os aromas do campo eram os únicos odores de santidade que conhecia. Ao crepúsculo era frequente ouvir a sua avó a chamar -            Guiiiiiiiii Num grito que, partido da sua aldeia, alcançava os melros no cume das árvores mais altas dos montes vizinhos, e afogava as lagartixas que bebiam o calor das pedras da ribeira. A vila junto à aldeia era formada por gente visivelmente envelhecida, pelo que os funerais eram tão constantes na rotina dos seus habitantes, como na capital as idas semanais ao cinema. Os cortejos fúnebres faziam ...

Uma rua com pardais

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  Da janela ele via os estudantes que sobem a rua embrulhados em panos negros. A rua era inclinada e eles subiam devagarinho passeio acima, com os músculos contraídos e o cabelo a tremer. Em casa, no calor do silêncio, ficava horas para ali, a olhar. Uma chuvinha sem peso começava a dar o ar da sua graça, e lá fora, os estudantes num princípio de frio e desconforto, mantinham a cadência da passada enquanto se enroscavam contra as suas capas. Na noite daquel a rua, tinha-se a impressão de se morar num romance de Virgilio Ferreira, com página para as faculdades, onde o marcador do lugar de leitura era a rua que vai do botânico aos arcos, apesar da visão dos telhados com as plantações de antenas. Aqueles pequenos pompons pretos lá em baixo, eram os nosso futuros médicos, advogados, físicos, engenheiros, psiquiatras, professores… mas naquela noite apenas pareciam um bando de pardais à solta trauteando cânticos estudantis. Suas almas são orquestras ocultas com instrumentos que tangem e...